Com a abertura mais profunda do mercado de eletricidade, permitindo a portabilidade de conta de energia elétrica, o setor precisa de alterações e modernizações em seus regramentos.
Esse debate está em fase final no Congresso Nacional. Junte-se a Camila Dias, diretora da Argus no Brasil, e Flávia Pierry, Editora de Gás Natural e Eletricidade. Elas debatem o tema e seus desdobramentos.
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Transcript
[Camila] Olá, e bem-vindos ao Falando de Mercado, uma série de podcasts trazidos semanalmente pela Argus sobre os principais acontecimentos com impacto para os setores de commodities e energia no Brasil e no mundo.
Meu nome é Camila Dias, diretora da Argus no Brasil, e no episódio de hoje eu converso com Flávia Pierry, editora de Gas Natural e Energia, sobre o projeto de modernização do setor elétrico, em análise pela Câmara dos Deputados.
[Flávia] Obrigada, Camila.
[Camila] Flávia, o Senado já aprovou o projeto de lei 414, conhecido como a modernização do setor elétrico, e agora o projeto precisa do aval da Câmara dos Deputados. Por que esse projeto é importante para o setor?
[Flávia] Camila, a modernização do setor elétrico é importante para preparar o setor para sua abertura total, permitindo que consumidores de eletricidade de qualquer porte possam migrar para o mercado livre, e assim escolherem seu fornecedor de energia.
O projeto de portabilidade da conta de luz – nos moldes do que ocorreu no mercado de telefonia, quando podíamos levar nosso número para outra operadora que fornecesse custos ou benefícios que nos interessassem mais – já foi aprovado. Mas para acompanhar esse processo, diversas bases do setor elétrico, legais e regulatórias, precisam também ser aprimoradas, modernizadas.
Por exemplo, as regras de comercialização de eletricidade terão de ser alteradas. Além disso, diversos custos que eram rateados por todos no setor agora precisam ser devidamente repartidos, e esse é outro ponto sensível que a modernização abarca. Questões sobre outras figuras do mundo da eletricidade – como a do autoprodutor de energia e a do auto gerador, aquele que tem geração distribuída em sua casa ou empresa – também tem de ser endereçadas, apenas para citar alguns exemplos.
E ainda, com a possibilidade de privatização da Eletrobras, também será preciso alterar pontos do marco legal do setor elétrico, como tratar do tema de descotização das usinas hidrelétricas, um legado da famosa MP 579, assinada no governo Dilma Rousseff.
[Camila] E há consenso no setor elétrico sobre a modernização?
[Flávia] Camila, como sabemos, o setor elétrico é enorme, e muito organizado. Temos associações diversas no setor: por exemplo, não temos apenas uma associação para representar os interesses dos geradores. Temos uma só para os geradores térmicos, outra só para os solares, outra para os eólicos... isso sem citar todos os outros elos da cadeia, como o das distribuidoras, dos consumidores grandes, dos transmissores...
Mas, esse projeto de lei vem sendo construído há vários anos, desde 2017, quando o Ministério de Minas e Energia começou a trabalhar em uma proposta de alterações das regras do setor elétrico para permitir levar o mercado a um modelo de maior abertura e competição.
Naquela época, a equipe do MME lançou o que seria a base para um projeto de lei de modernização, e o disponibilizou para consulta ppublica, que ficou conhecida como Consulta Pública 33, ou a CP 33.
Ali, no site do MME, os agentes puderam questionar as propostas, trazer novas sugestões e receber feedbacks dos técnicos do MME. Isso permitiu que o setor chegasse a alguns consensos, onde todo mundo cedia um pouco, para ganhar um pouco, trazendo benefícios para todos.
E O projeto de lei 414 teve por base os princípios que pautavam a CP 33.
[Camila] E como ele está andando agora no Congresso, Flávia?
[Flávia] o texto já foi aprovado no Senado, Camila, e agora está na Câmara. Porém, ele deve sofrer alterações, e terá de voltar ao Senado, conforme prevê o rito legislativo.
Na Câmara, o projeto conta um relator especial, o deputado Fernando Coelho Filho, do partido União, de Pernambuco. Coelho Filho era o ministro de minas e energia quando a CP 33 foi criada, e portanto conhece bem o objetivo da proposta e os interlocutores do setor de eletricidade.
São dois os problemas que Coelho Filho tem de lidar para construir seu relatório: pesa contra a aprovação do texto o tempo, e as pressões parlamentares para que o projeto acabe recebendo algumas emendas que vão em sentido oposto ao objetivo da CP 33, e acabem até por elevar custos aos consumidores de eletricidade, ao invés de mitigá-los.
Bom, quanto ao tempo: temos de nos lembrar que este é um ano eleitoral, e que a partir de maio os deputados estão liberados para fazerem campanha eleitoral. Isso esvazia as votações na Câmara e projetos de relevo como esse, com muitos interessados, podem acabar ficando emperrados. Depois das eleições, com novos governantes eleitos, o Congresso pode perder interesse em fazer alterações como a de um marco legal do setor elétrico. E aí, obviamente, a depender de quem ganhe as eleições, o setor elétrico tem receios de que a abertura do mercado não seja prioridade, e que o projeto seja enterrado, depois de cinco anos de trabalhos.
Já pelo lado da articulação política, interlocutores de Coelho Filho o descrevem como estando “muito pressionado” para acolher emendas com pedidos de outros parlamentares, para conseguir aprovar o novo marco legal do setor. Conhecemos bem esse processo em Brasília, de angariar apoios para a aprovação de projetos ao abrir espaço a emendas de outros deputados, solicitadas por seus apoiadores.
Para tentar evitar a polêmica e agilizar o processo, o relator está adotando a seguinte estratégia, isso segundo relatos que ele mesmo fez publicamente: ele está debatendo o texto informalmente com o setor elétrico, sem passar por novos debates nas comissões temáticas da Câmara, e tentando chegar em consenso ao texto que vai apresentar. Em negociação com o presidente da Câmara, Arthur Lira, que é quem define a pauta de votações, Coelho Filho quer aprovar necessidade de votação em Urgência desse PL, levando-o direto ao Plenário da Câmara, e com prazo de dias para ser votado antes que trave a pauta de votações.
A ideia é tentar aprovar o projeto até o meio de abril na Câmara, para que ele tenha tempo de ser avaliado novamente no Senado até o final de maio, quando parlamentares estão desobrigados de cumprir quorum para trabalharem em suas campanhas de reeleição.
[Camila] E quais seriam exemplos de pontos que estão mais polêmicos nesse processo de negociação política?
[Flávia] Um deles é o prazo para que todo consumidor de eletricidade possa migrar para o mercado livre. O texto aprovado no Senado previa que o governo federal e a agência reguladora de energia elétrica tivessem até 42 meses após a aprovação da lei para que todo o setor estivesse aberto, de forma escalonada. Mas, segundo nossa apuração, há pressões para que esse prazo seja dilatado. Isso seria um pleito da industria de geração distribuída, que acredita que quanto mais tempo o mercado ainda for fechado, maior é o interesse de consumidores médios em instalarem placas solares em seus telhados.
Outro ponto que resta incerto é a definição detalhada sobre onde serão instalados os gasodutos para atender a usinas termelétricas a gás, previstas na MP da Eletrobras. Isso preocupa os consumidores de energia elétrica, que poderão ser onerados com os custos desses gasodutos conectados a usinas termelétricas.
Também está em debate a alteração de regras de enquadramento de autoprodutores de energia elétrica. A atual regra estaria retirando esses consumidores auto-produtores do pagamento de subsídios que são rateados entre todos os consumidores de eletricidade.
Este é um tema complexo, altamente técnico e com muitos interlocutores. E exatamente isso torna o processo legislativo também complexo e muito afeito a pressões pela inclusão de benefícios difusos. Por exemplo: também foi debatido no setor que as distribuidoras de eletricidade que foram as primeiras a serem privatizadas, nos anos 2000, pudessem agora renovar suas concessões com alguns benefícios e facilidades, como por exemplo com redução de metas de qualidade, cobrada das distribuidoras costumeiramente.
Então, Camila, em suma: Temos uma importante chance modernizarmos o setor elétrico agora. E por isso é compreensível que os agentes do setor estejam tão interessados no debate e em serem ouvidos pelo relator. Mas também é importante que lancemos luz sobre o tema, para acompanharmos de perto e preservarmos tanto os ritos legislativos corretos com também fiscalizarmos a alteração em mais este marco legal, que é fundamental mas pode resultar em benefícios e subsídios difusos caso o debate seja captaneado dessa forma.
[Camila] Muito obrigada, Flavia. Vamos seguir acompanhando tudo isso de perto.
Esse e os demais episódios do nosso podcast em português estão disponíveis no site da Argus em www.argusmedia.com/falando-de-mercado.
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