Camila Fontana: A tabela de frete mínimo da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) colocou em prática um novo sistema de fiscalização e vem trazendo incertezas para o setor de transportes.
Eu sou Camila Fontana, chefe adjunta de redação da Argus no Brasil. E estou aqui com João Petrini, um dos responsáveis pelo relatório Argus Brasil Grãos e Fertilizantes, e especialista em logística. João, conta um pouco como a gente chegou até aqui? Qual a linha do tempo da tabela de frete da ANTT?
João Petrini: Bom, Camila, para isso a gente precisa voltar para 2018, na grande greve de caminhoneiros que houve naquele ano. O Brasil começou a definir valores após os motoristas reivindicarem maiores salários e reduções no preço do diesel. A greve naquela época bloqueou grandes rodovias em 25 estados e interrompeu as cadeias logísticas. A tabela visava garantir que motoristas recebessem salários suficientes, e multas foram estabelecidas para quem descumprisse a tabela.
Só que entidades empresariais entraram com uma ação judicial contestando a constitucionalidade da lei em 2018. Desde então, transportadoras e empresas raramente pagavam as multas recebidas pelo não cumprimento da tabela, por conta de uma liminar de 2018 do Supremo Tribunal Federal (STF), que criou insegurança jurídica. O processo está na corte sob relatoria do ministro Luiz Fux, mas não há indicação de que ele tome um posicionamento.
A tabela mínima de frete tem sido alvo de reclamações há muito tempo. Caminhoneiros afirmam que a tabela nunca foi efetivamente aplicada, enquanto os contratantes de frete argumentam que o mercado de logístico brasileiro é altamente competitivo e não exige esse tipo de regulamentação. Os contratantes também argumentam que os valores da tabela mínima, e seus cálculos, não refletem com precisão o mercado.
CF: Com essa nova fiscalização, o que mudou?
JP: O que muda agora é que a fiscalização dessa tabela passará a ser eletrônica. Em julho deste ano, a ANTT iniciou um período para que o setor se adaptasse e, no começo de outubro, a nova fiscalização entrou em vigor.
Agora, o cumprimento dos valores mínimos de fretes é monitorado automaticamente, com base nas informações inseridas no Manifesto Eletrônico de Documentos Fiscais, o MDF-e, emitido pela parte que contrata o caminhoneiro, como as transportadoras. O sistema coleta informações de diversas notas fiscais relacionadas ao transporte da carga, cruzando os dados declarados no MDF-e com a tabela mínima de frete. Se o valor informado estiver abaixo do limite legal, o sistema identificará a irregularidade sem a necessidade de um reporte ou fiscalização física adicional.
O MDF-e exige dados mais detalhados, como o valor do frete, a forma de pagamento, dados bancários do caminhoneiro e o tipo de produto transportado.
CF: João, com essa nova fiscalização e o maior cumprimento da tabela da ANTT, quais tem sido as reclamações do setor logístico de grãos e fertilizantes?
JP: Camila, em uma carta enviada à Frente Parlamentar da Agropacuária, a FPA, em 21 de outubro, um grupo de 50 entidades e associações do agronegócio protesta contra a tabela de frete mínimo, alegando que ela é "imprecisa e desatualizada". Os grupos signatários temem que o sistema de fiscalização eletrônica da ANTT possa aumentar os custos logísticos, "inclusive por pequenas divergências". Segundo esses grupos, o frete rodoviário de produtos agrícolas e outras mercadorias deve seguir um modelo livre de formação de preços, baseado na oferta e na demanda.
A ANTT calcula e atualiza a tabela mínima de frete considerando fatores como a carga a ser transportada, a distância da rota, o número de eixos do veículo e os custos fixos e variáveis de um caminhão. A agência atualiza os dados que serão incluídos no modelo de cálculo do preço de frete mínimo anualmente até 20 de janeiro, e as tarifas são atualizadas com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que ocorre anualmente até 20 de julho.
Por exemplo, os custos logísticos podem aumentar de 20pc a 50pc, de acordo com as projeções da Associação dos Misturadores de Adubos do Brasil (AMA). Os signatários esperam usar a FPA para entrar em contato com os ministérios da Agricultura e Pecuária, dos Transportes, da Casa Civil e da Fazenda para revisar a metodologia aplicada pela ANTT para a tabela.
Outro ponto de reclamação é sobre o que a lei entende que é um Transportador Autônomo de Carga, um TAC. A tabela da ANTT é aplicada apenas para motoristas autônomos, por isso o impacto é maior para o setor de grãos e fertilizantes, que utilizam mais essa modalidade, do que em outros setores, como combustíveis. A lei brasileira diz que um TAC pode ter até três veículos, mas as empresas pontuam que um autônomo deveria ter apenas um caminhão.
Transportadoras e empresas também reclamam da falta de informações sobre o que será considerado para a fiscalização de um frete. Por exemplo, existe mais de uma rota para se chegar ao mesmo destino, com variações de pedágio, distância, estados por onde se passa. Qual ferramenta utilizar para medir isso? Para esses outros pontos, não há um direcionamento oficial da agência, Camila. Do lado da ANTT, a agência afirmou que avaliará o conteúdo das solicitações, mantendo um diálogo aberto com todas as partes interessadas. A ANTT também disse que não possui dados sobre multas aplicadas ou valores arrecadados, pois os números são recentes e ainda estão sendo compilados pelo departamento responsável.
CF: Diante desse cenário que você descreveu, quais tem sido os impactos em termos de preços para os fretes de grãos e fertilizantes já há um mês, pelo menos, de nova fiscalização?
JP: O maior aumento entre as 31 rotas de fertilizantes que a gente monitora semanalmente aqui na Argus foi registrado nas rotas com origem no porto de Santos e em Cubatão, e que têm destino até Mato Grosso, que subiram até 76pc desde o começo dessa nova fiscalização. O frete para Rondonópolis encerrou outubro com preço médio de R$480/tonelada (t), ante R$273/t na última semana de setembro. Já o trecho para Sorriso chegou a R$580/t, acima dos R$358/t um mês antes.
Os preços dos fretes nas rotas de Santos e Cubatão, que também vão para Goiás e Minas Gerais, subiram significativamente. O frete para Catalão chegou a R$263/t, ante R$220/t, em setembro. Já a rota para Uberaba/Uberlândia, subiu para R$210/t, ante R$148/t no mês anterior.
Em outra importante porta de entrada para fertilizantes no Brasil, o porto de Paranaguá, os fretes também aumentaram de maneira significativa, Camila. A rota para Rondonópolis atingiu R$409/t no final de outubro, ante R$350/t no final de setembro. O trajeto para Sorriso avançou para R$538/t em outubro, ante R$453/t. No Arco Norte, a rota Miritituba-Sinop se destacou, subindo para R$255/t, ante R$188/t no fim de setembro.
Já para o transporte de grãos, Camila, não vimos tantas reclamações ou aumentos expressivos, pois a demanda pelo serviço de transporte permanece constante devido às safras recordes de milho e soja no ciclo 2024-25. Isso significa que os transportadores estão pagando fretes acima do mínimo estabelecido. Além disso, durante a temporada de exportação de grãos, os fretes de fertilizantes geralmente têm desconto, pois são fretes de retorno. Os caminhões geralmente retornam às áreas de produção agrícola sem carga, visando transportar o máximo de soja e milho possível, porque os fretes de grãos são mais lucrativos.
CF: Além do aumento de fretes de fertilizantes, quais outros impactos nas dinâmicas de mercado foram reportados?
JP: Camila, isso depende de região para região. Em algumas rotas que a Argus monitora, a liquidez reduziu bastante. Os volumes de carga transportados diminuíram, com o mercado praticamente travando. Isso ocorre por conta de um impasse entre transportadoras e as empresas de fertilizantes. De um lado, as transportadoras buscam praticar os valores da tabela para evitar as multas. Do outro, empresas estão relutantes em arcar com esse aumento de custo.
Outro efeito da nova fiscalização foi o aumento significativo da demanda por caminhões de nove eixos. Normalmente, o mercado tem uma oferta maior de veículos com sete eixos. Porém, com as novas regras, esses caminhões perdem eficiência e têm menor custo-benefício em comparação com os caminhões de nove eixos, cuja oferta é menor, o que também contribui para a menor liquidez.
Sem contar que há também preocupações de que rotas mais curtas sejam as mais afetadas em relação a outras, pois a distância percorrida é um dos mecanismos de cálculo da tabela mínima de frete.
CF: João, olhando pra frente, o que a gente tem no radar, inclusive do ponto de vista jurídico?
JP: Camila, deixa eu me arriscar aqui no “juridiquês” da coisa. No último dia 4 de novembro, saiu uma decisão de um juiz em Curitiba suspendendo as multas de uma transportadora que foram aplicadas pela ANTT, por conta do descumprimento da tabela. Isso deve acontecer até que o STF discuta a constitucionalidade dessa tabela mínima de frete. Na decisão, o juiz concordou que o quadro de insegurança jurídica permanece e reconheceu que as mudanças não podem ser aplicadas enquanto a constitucionalidade delas não for decidida pela Suprema Corte, o que gera ainda mais incertezas para a sequência do ano e para a logística como um todo.
CF: Muito obrigada pela sua participação, João. Obrigada aos nossos ouvintes. E a gente volta na semana que vem com mais um episódio do Falando de Mercado. Até lá.