O mercado de certificação de energia renovável ganhou tração no Brasil nos últimos anos, com cada vez mais empresas buscando assegurar garantia de origem para as compras de energia. Com o mercado mirando menor pegada de carbono, a expectativa é que os certificados de energia renovável (RECs) entrem no foco da estratégia de negócios das empresas – para além do viés somente reputacional.

A repórter do relatório Argus Brazil Gas Markets, Rebecca Gompertz, e o diretor do Instituto Totum, Fernando Giachini Lopes, conversam sobre oportunidades e desafios no mercado de certificação de energia renovável no Brasil, às vésperas do evento I-REC Day Brazil 2024, que será organizado pelo instituto no dia 21 de março.

 

Transcript: 

Rebecca Gompertz: Olá e bem-vindos ao ‘Falando de Mercado’, uma série de podcasts trazidos semanalmente pela Argus sobre os principais acontecimentos com impacto para os setores de commodities e energia no Brasil e no mundo. Meu nome é Rebecca Gompertz, eu sou repórter do relatório Argus Brazil Gas Markets. No episódio de hoje eu converso com Fernando Giachini Lopes, diretor do Instituto Totum. O Instituto é o órgão emissor local e representante do I-REC Standard no Brasil e vai realizar um evento em São Paulo, em 21 de março, reunindo players do mercado de RECs e trazendo debates sobre o atual estado deste setor – o I-REC Day Brazil 2024. Bom dia. Seja muito bem-vindo, Fernando.

Fernando Giachini Lopes: Oi, bom dia, Rebecca! Obrigado pelo convite. Vamos falar tudo aí sobre o evento.

RG: Fernando, queria começar te perguntando por que as empresas optam por adquirir I-RECs?

FGL: No começo dos anos 2000, as empresas começaram a se preocupar com as questões de sustentabilidade. E um dos itens importantes era a compra de energia. Elas queriam ter certeza que estavam comprando energias que fossem renováveis e não decorrente de combustíveis fósseis. E elas encontraram o primeiro problema, porque como as empresas estão em uma rede, em um sistema interligado, é impossível fazer o rastreamento da energia. E aí foi criado um sistema na Europa, que depois se expandiu para o mundo inteiro, inclusive aqui para o Brasil, que é o sistema de certificados de energia renovável. Ou seja, cada unidade de energia renovável injetada no grid, ela é contabilizada e vira um certificado. Então a gente vai empilhando esses certificados de um lado da prateleira. Os consumidores adquirem esses certificados na exata quantidade da energia que eles consomem. Então nós vamos debitando numa prateleira e creditando na outra prateleira. E, para que as declarações de energia renovável sejam críveis, elas precisam estar embasadas por certificados de energia renovável. Uma empresa só pode dizer que consome energia renovável de dois modos Primeiro, ela tem uma ligação direta de uma usina renovável com a sua planta, e isso acontece muito raramente no Brasil, mas acontece, algumas plantas têm isso. Ou ela demonstra que possui certificados de energia renovável, que é a grande parte dos casos. Então essa é a principal motivação das empresas, poder fazer alegações sobre o uso de energia renovável. E a gente vai ver que isso tem até implicações na pegada de carbono.

RG: Muito interessante. E qual é o perfil dos compradores de I-RECs no Brasil? São indústrias, corporações, empresas locais, multinacionais?

FGL: Basicamente, existem aí três grandes grupos. O primeiro grupo são empresas internacionais que operam e têm instalações aqui no Brasil. E essas empresas possuem compromissos de consumo de energia renovável. Por exemplo, existe um grupo, uma iniciativa chamada RE100, que congrega mais de 400 empresas de âmbito mundial, em que elas se comprometem com o consumo, o uso de energia renovável. Então esse é um perfil de empresas. Outro perfil de empresas são as empresas que fazem o relato das suas emissões de gases de efeito estufa pelo protocolo GHG. Então, para essas empresas, é importante declarar o uso de energia renovável, porque se elas conseguem provar o uso de energia renovável, elas diminuem a pegada de carbono. Então hoje o Brasil tem mais de 300 empresas que relatam de maneira voluntária suas emissões de gases de efeito estufa pela plataforma do protocolo GHG. Dessas empresas, uma grande parte adquire certificados de energia renovável para poder diminuir a sua pegada de carbono. E um terceiro grupo, um pouco menor, são os chamados prédios verdes. Quando a gente vai em um prédio comercial e vê lá certificação LEED, green building, para um prédio ser verde, ele precisa atender a vários critérios de sustentabilidade. E um deles é gerar ou comprar energia renovável. Então, os prédios verdes do Brasil e do mundo adquirem certificados de energia renovável. Esses são os três grandes focos de empresas. Mas há também as empresas que são cobradas pelo conteúdo de carbono no seu produto. Recentemente, foi aprovada uma legislação na União Europeia chamada CBAM, Carbon Border Adjustment Mechanism. Os produtos que entram na União Europeia vão ser taxados em função do diferencial de carbono em relação aos produtos produzidos na Europa. E se uma empresa quer, por exemplo, vender alumínio, a gente sabe que alumínio é 95% energia elétrica. Então, se ela consegue provar que a energia elétrica é renovável, que tem emissão zero, esse produto entra com conteúdo de carbono bem pequeno lá na Europa e se torna mais competitivo.

RG: Como essas empresas interessadas em adquirir I-RECs podem realizar essas compras?

FGL: Basicamente há três modelos. Um modelo é o seguinte: aquela empresa que compra energia como sempre comprou, e aí tem um cara da área de sustentabilidade que no começo do ano checa o quanto que a empresa consumiu de energia. Em seguida, ele fala ‘precisamos da garantia de origem para essa energia’. Então, ele sai no mercado e compra os certificados de energia renovável desvinculados dos contratos de energia. Esse é um modelo que a gente chama de compra retrospectiva, você não mexeu no seu processo de compra de energia e, depois, no começo do ano seguinte faz a compra dos RECs para parear com essa energia. Outras empresas com outro patamar de maturidade pensam o seguinte: olha, esse processo não é só para um ano, isso vai ocorrer nos próximos anos. Então, elas continuam comprando energia elétrica da mesma forma, mas fazem um contrato de compra segurada de REC, uma compra prospectiva. Fecha um contrato de dois, três, cinco anos de RECs e, como ela já sabe mais ou menos o seu consumo de energia, consegue prever a compra futura de I-RECs. E aí tem um terceiro nível de maturidade, que é quando o cara da área de ESG e sustentabilidade vai na sala do pessoal que trabalha em compra de energia e fala o seguinte: ‘olha, a partir de agora, os contratos que forem vencendo, por que que nós já não fechamos os novos contratos de compra de energia no mercado livre, por exemplo, já pedindo o REC vinculado à energia?’ Então, o terceiro patamar de maturidade de gestão em termos de compra de certificados é a incorporação dos I-RECs aos contratos de compra de energia.

RG: O cenário no Brasil é similar ao observado no restante do mundo?

FGL: Nós estamos em um nível de maturidade recente. O mercado europeu e o mercado norte-americano têm aí, aproximadamente, 20 anos de prática. E é preciso levar em conta que, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, existem exigências regulatórias a respeito de produção ou consumo de energia renovável. Então o mercado é mais estruturado. Aqui no Brasil, apesar de o programa de certificação de energia renovável ter 11 anos, ele tomou tração e conseguiu maior desenvolvimento nos últimos quatro, cinco anos. Então o que a gente tem visto é que no exterior o modelo de maturidade vai para o nível mais alto, que é o fechamento de contratos de energia já prevendo a energia com o certificado de origem de energia, enquanto aqui no Brasil ainda estamos em um movimento de que as compras retrospectivas são as mais frequentes. Mas algumas empresas já estão trabalhando em um nível de maturidade maior. Agora com a exigência de mercado de menor pegada de carbono para alguns tipos de produtos, principalmente produtos exportados, o REC vai passar de uma característica só reputacional para uma característica negocial, quer dizer, vai tornar o produto mais competitivo.

RG: Fernando, considerando as recentes exportações de geração de energia elétrica para países vizinhos, os I-RECs gerados no Brasil podem ser exportados?

FGL: Podem. As boas práticas desse mercado de energia renovável, lembrando que nós estamos falando de um aspecto voluntário, as boas práticas pedem que você adquira I-RECs dentro do grid onde você está conectado, ou dentro do mercado regulado onde você atua. Ou que exista algum tipo de interconexão. Então, eu lembro que algum tempo atrás o pessoal na Argentina comprava a I-RECs aqui no Brasil por causa da existência de conexão física e porque não existia um sistema estruturado de I-RECs na Argentina. Hoje existe um sistema estruturado de I-RECs na Argentina, então o consumidor argentino pode adquirir I-RECs de usinas da própria Argentina. O que não impede, como existe uma conexão física entre os sistemas, que esses I-RECs também sejam adquiridos aqui no Brasil.

RG: A Argus acompanha a precificação de I-RECs de energia solar, hidráulica e eólica no Brasil e em outros países do mundo. Você enxerga alguma mudança no balanço entre oferta e demanda de I-RECs no Brasil que poderia se refletir nos preços?

FGL: O que ocorre, Rebecca, é que energia renovável no Brasil é um produto bastante abundante. Se a gente pegar nos últimos dois anos, mais de 90% da energia gerada no Brasil foi de fonte renovável. Então é natural que os preços de I-REC aqui no Brasil sejam mais baratos em função da abundância da oferta, do que, por exemplo, em Singapura. Tenho notícias que em Singapura, I-RECs são negociados a $15, $20, enquanto aqui no Brasil nós estamos falando de algo como 50 centavos de dólar. O que pode mexer nesse mercado? Existem algumas iniciativas, por exemplo, aquela iniciativa do RE100, que levantou um pouco a barra em termos de aceitação de I-RECs. É uma iniciativa voluntária. Então, a princípio, você pode comprar I-REC de qualquer planta, de qualquer tipo de energia, de qualquer data de comissionamento. Porém, na iniciativa RE100, foi limitado a 15 anos para o passado. Então, por exemplo, não é admissível, para as empresas que fazem parte do RE100 comprar I-RECs de uma hidrelétrica que foi comissionada e começou a operar na década de 1970, ou na década de 1980, ou até na década de 1990. Então, eles colocaram uma barreira, uma régua de 15 anos. Por quê? Porque eles querem incentivar o uso de novas energias. Então, por exemplo, no Brasil, se você fizer uma barreira de 15 anos, você vai retirar grande parte, 90% do nosso parque hidrelétrico. Ao contrário, grande parte do parque eólico e grande parte do parque solar tem menos de 15 anos. Então, isso deve mexer um pouco nos preços. E se vier algum tipo de regulação, aí vai mexer também nos preços.

RG: Entrando agora em um mercado “irmão” dos I-RECs, digamos assim, pode me explicar o que são exatamente os certificados de biometano?

FGL: Isso é uma iniciativa razoavelmente recente que nós entramos, tem aí três a quatro anos, que é uma questão muito prática. Uma empresa nos procurou, essa empresa estava ligada em um gasoduto, na região Norte e Nordeste do Brasil, e a empresa sabia que nesse gasoduto tinha uma parte importante majoritária de gás natural fóssil, mas tinha uma quantidade importante de biometano vinda de um aterro sanitário. E essa quantidade era variável ao longo do ano e ela se misturava, tanto o biometano quanto o gás natural, a molécula é basicamente a mesma, eles se misturam no duto, então, essa empresa estava querendo fazer um reporte de emissões e queria se apropriar da parte renovável do gasoduto. E ela queria saber o instrumento possível. Ela estava até pensando em usar um pipeline virtual, ou seja, entregas de gás do biometano por caminhão para garantir a rastreabilidade. Caminhão, entre parênteses, que seria diesel, então isso geraria mais emissões ainda. Aí o que nós explicamos para eles é o seguinte, não, não precisa necessariamente ocorrer a entrega física da molécula. Você pode separar o atributo ambiental do biometano da molécula física e esse atributo ambiental pode ser comercializado de forma separada. Então, essa empresa poderia continuar com o mesmo consumo físico de gás e ela compra certificados até parear o seu consumo, em termos de metros cúbicos ou em termos de milhão de BTU. Então, o certificado de gás natural renovável, que é o certificado de biometano, procura expandir as fronteiras do atributo ambiental do biometano para além do consumo físico da molécula. Então, o que algumas empresas já fazem, já houve várias transações desse instrumento, desse Gas-REC, a empresa não necessariamente precisa estar conectada a um gasoduto para comprar os certificados e poder fazer a alegação de consumo de biometano em vez de gás natural. O que a empresa ganha com isso? A emissão de gás de efeito estufa do biometano é menos de 1% da emissão de gás de CO2 equivalente do gás natural. Então, ela consegue diminuir de forma drástica a pegada de carbono relativa ao consumo de gás.

RG: O desenvolvimento desse certificado tende a ser muito importante para o mercado de biometano...

FGL: O que acontece é que, muitas vezes, a produção de biometano fica distante do consumidor. E o consumidor, em alguns casos, que está próximo ao biometano, ele se interessa pelo gás, mas não pelo atributo ambiental do gás. Então, o jeito de você valorar isso é conseguir segregar o atributo ambiental da molécula e vender esse atributo ambiental de forma separada.

RG: Muito obrigada pela conversa, Fernando. O mercado de RECs é muito promissor no Brasil e a Argus vai continuar a trazer todas as novidades desse setor.

FGL: Eu gostaria de agradecer, Rebecca, e enfatizar o convite para o I-REC Day Brasil, que vai ser no dia 21 de março de 2024, aqui na cidade de São Paulo, no Hotel Tivoli. Um evento presencial. Nós vamos ter lá mais de 250 pessoas, 20 painelistas, nacionais e internacionais, que têm bastante conhecimento do mundo dos certificados de energia renovável. Nós vamos falar de energia elétrica, de certificado de gás, de biometano, de certificação de hidrogênio, de CBAM, de mercado de carbono, estratégias de descarbonização... Enfim, será um dia bastante rico de trabalho, onde os participantes vão ter uma noção completa do que está acontecendo nesse mercado, tanto no Brasil quanto no mundo.

RG: Este e os demais episódios do nosso podcast em português estão disponíveis no site da Argus em www.argusmedia.com/falando traço de traço mercado. Visite a página para acompanhar os acontecimentos que pautam os mercados globais de commodities e entender seus desdobramentos no Brasil e na América Latina. Voltaremos em breve com mais uma edição do Falando de Mercado. Até logo!”